Cuba entra em catarse
Cubanos se manifestam contra proibições e má gestão estatal que dificultam a vida cotidiana
Mauricio Vicent
Em Havana
Por que um cubano não pode se hospedar em um hotel mesmo que tenha dólares obtidos honradamente? Deve-se exercer a solidariedade com outros países no campo da saúde, quando devido a essa colaboração os serviços médicos se deterioraram notavelmente no país? É possível evitar a corrupção enquanto se continuarem pagando salários ínfimos? Por que o Estado não estimula a criação de cooperativas e pequenas empresas privadas em setores nos quais sua gestão se mostrou ineficiente?
Queixas e critérios como estes, e outros que questionam políticas oficiais até agora intocáveis, são escutadas ultimamente em reuniões e assembléias realizadas na ilha. Não se trata de uma revolta popular espontânea, nada disso. Mas o início do debate em células de base do Partido Comunista de Cuba (PCC), centros de trabalho e Comitês de Defesa da Revolução (CDR) sobre o discurso que Raúl Castro pronunciou em 26 de julho passado, no qual anunciou mudanças "estruturais" e "conceituais" para solucionar os problemas econômicos, abriu a caixa de Pandora.
A discussão, propiciada pelas autoridades sob a ordem de expressar livremente qualquer preocupação ou sugestão, está provocando uma verdadeira catarse coletiva: enxurradas de críticas aos empecilhos e proibições inúteis que dificultam a vida da população; queixas angustiadas pelo escasso poder aquisitivo dos salários ou a péssima situação do transporte e da moradia; denúncias das contradições mais evidentes, a começar pela duplicidade monetária e os elevados preços de artigos básicos que só podem ser adquiridos em divisa estrangeira, quando a maioria ganha salários exíguos em moeda nacional.
A discussão, propiciada pelas autoridades sob a ordem de expressar livremente qualquer preocupação ou sugestão, está provocando uma verdadeira catarse coletiva: enxurradas de críticas aos empecilhos e proibições inúteis que dificultam a vida da população; queixas angustiadas pelo escasso poder aquisitivo dos salários ou a péssima situação do transporte e da moradia; denúncias das contradições mais evidentes, a começar pela duplicidade monetária e os elevados preços de artigos básicos que só podem ser adquiridos em divisa estrangeira, quando a maioria ganha salários exíguos em moeda nacional.
"A mensagem majoritária é que em Cuba faltam reformas, e quanto antes melhor", resume um advogado que participou de uma assembléia de bairro.
Independentemente dos lugares onde ocorram, as preocupações e reclamações expressas pela população são semelhantes, embora o nível e a profundidade das análises sejam diferentes. O lamento diante das calamidades cotidianas, predominante, deu lugar em alguns lugares a questionamentos mais profundos.
Na CUJAE, a maior universidade politécnica de Havana, o intercâmbio entre os militantes da Juventude Comunista derivou para a questão da necessidade de rediscutir "as relações de propriedade" no socialismo. Como em outros ambientes acadêmicos, foram abordados problemas como o da excessiva "estatização" que restringe o desenvolvimento econômico e a necessidade de fomentar a criação de cooperativas e permitir a pequena empresa privada para estimular a produção.
No início da semana passada, o CDR de La Puntilla, um dos bairros "bem" de Havana, realizou sua assembléia. Foi explicado às pessoas que podiam dar qualquer opinião e que da reunião seria feita uma ata que será enviada ao comitê municipal do PCC, onde uma equipe está encarregada de receber os relatórios e transmitir as queixas e sugestões às instâncias superiores.
Depois da leitura do discurso -de uma hora- começaram as intervenções. A reunião começou com certa lentidão e foi se animando. "Chegou-se a questionar a política de enviar os jovens para as escolas agrícolas -por não haver condições de alimentação nem recursos para atendê-los adequadamente-, ou a criticar que as autoridades reprimam os aposentados que fazem qualquer negócio para subsistir, como vender amendoim torrado, quando as verdadeiras causas da corrupção são outras; a primeira delas que com um salário normal não se pode viver dignamente", comentou um dos moradores.
A idéia mais citada em La Puntilla e em outras reuniões de que este jornal teve conhecimento foi uma citação do próprio discurso de Raúl Castro:"Revolução é sentido do momento histórico, é mudar tudo o que deva ser mudado". Aquelas palavras de 26 de julho abriram certas expectativas em Cuba. Em tom realista e de autocrítica, Raúl mencionou os assuntos que mais pressionam os cubanos, entre eles "os salários claramente insuficientes para viver", e admitiu que era preciso "transformar conceitos e métodos superados pela vida".
Segundo se diz entre a população, foi o próprio presidente interino quem pediu o debate e solicitou que não se disfarcem os resultados e critérios mencionados, por mais duros que sejam. As discussões serão estendidas a todo o país nas próximas semanas, mas pelo que se sabe até agora as pessoas não poupam críticas. No jornal "Granma", o templo da ideologia, surgiu com força um assunto que já é o clamor popular: a queixa pela deterioração da saúde pública devido ao envio de médicos e recursos à Venezuela, política até agora intocável. E em alguns centros acadêmicos se reivindicaram maiores espaços de participação e influência na tomada de decisões políticas.
Alguns lembram que no início dos anos 90 houve um processo semelhante. "As pessoas falaram pelos cotovelos, mas pouco se fez", afirma um ex-militante comunista. Como ele, há muitos céticos que se inclinam pelo "ver para crer".Uma figura política comprometida com a linha atual opina: "O que está aparecendo agora é o mesmo que as pessoas dizem na rua e em casa".
Consciente de que o conceito chave no debate que começa é "mudança", ele fala em "criar consensos" e afirma: "Ou fazemos nossas mudanças ou a história as fará".
http://noticias.uol.com.br/midiaglobal/elpais/2007/09/19/ult581u2253.jhtm
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