quarta-feira, 30 de abril de 2008

HORROR SOCIALISTA


Reconstrução da Tchetchênia traz à tona corpos de desaparecidos durante a guerra

Andrew E. Kramer
Em Grozny, Rússia


A surpresa se encontrava sob as lajotas do porão do jardim de infância da Rua Kadyrov, encontrada por operários que trabalhavam aqui, na zona de guerra que se transformou em área de construção, na capital da Tchetchênia.

Os corpos foram exumados e reenterrados com respeito, apesar de praticamente sem pausa no bater de martelos e na aplicação de gesso nas paredes para permitir a análise dos peritos criminais no porão.

E isto, dizem funcionários de direitos humanos, não é incomum em uma cidade mais ou menos em paz agora, mas com muitos porões sombrios e muita reconstrução em andamento.

"Pessoas morreram ali e agora eles acabaram de construir uma escola", disse Natalia Estemirova, uma pesquisadora do Memorial, um grupo de direitos humanos, em uma entrevista. O grupo dela documentou a descoberta dos corpos em meados do ano passado no jardim de infância Zvyozdochka, ou Estrela.

Ela acrescentou: "Nós sabemos que pessoas desapareceram. Nós sabemos que a maioria delas foi morta. E sabemos que precisamos procurar por elas com uma pá".

Mas qualquer trabalho sistemático de perícia criminal poderia reviver questões espinhosas para o presidente russo de saída, Vladimir V. Putin, sobre uma guerra que, juntamente com a recuperação econômica da Rússia, será seu legado dos últimos oito anos.

Em conseqüência, a política geral da Rússia em relação às valas comuns na Tchetchênia é não perturbá-las. Há 57 valas comuns conhecidas mas não abertas na república da Tchetchênia. Inúmeras sepulturas menores se encontram sob os parques da capital, pátios e porões.

Na Grozny pós-guerra, tratores, guindastes e homens com perfuratrizes trabalham ao redor e às vezes sobre os covas das duas guerras. A cidade, sitiada, bombardeada e despovoada pela guerra, agora se tornou cenário de um esforço de reconstrução frenético, financiado pelo petróleo. E as autoridades apontam orgulhosamente para os novos prédios reluzentes como símbolos da paz.

No ano passado, após a Rússia ter empossado como presidente o líder de uma das milícias aliadas, Ramzan Kadyrov, 969 refugiados receberam moradias novas. Uma mesquita que acomodará 10 mil fiéis está sendo erguida na praça central, e muitas escolas foram reconstruídas.

Mas as valas comuns em Grozny continuam sendo um problema irritante. Pelo menos meia dúzia foram discretamente transferidas para abrir espaço para a reconstrução.

Naquele que talvez seja aparentemente o caso mais chamativo, em abril de 2006, trabalhadores exumaram 57 corpos no Parque Kirov para abrir espaço para um complexo de entretenimento para a juventude. Durante os bombardeios em 1999 e 2000, disseram trabalhadores de direitos humanos, os moradores enterraram parentes e vítimas não identificadas no parque. Seis corpos daquele local nunca foram identificados e foram reenterrados em túmulos numerados em um cemitério.

"Muitos, muitos corpos são encontrados", disse Estemirova.

As valas comuns de Grozny simbolizam de forma sombria a paz que a Rússia estabeleceu aqui, uma enfatizando a reconstrução física apesar de ignorar as cicatrizes humanas da guerra. Não há indiciamento sistemático dos crimes de guerra ou identificação dos mortos.

Quantas pessoas desapareceram permanece uma pergunta aberta e contenciosa. Um ombudsman de direitos humanos do governo tchetcheno, Nurdi Nukhazhiyev, identificou 3.018 desaparecimentos não solucionados das duas guerras, que começaram em 1994. Os restos mortais de alguns dos desaparecidos certamente estão enterrados sobre as novas construções.

O promotor regional apresentou um número mais baixo, dizendo que 2.747 civis tchetchenos impetraram queixas de pessoas desaparecidas, e que 574 casos foram solucionados. O Memorial, o grupo de Estemirova, estima o número de pessoas desaparecidas entre 3 mil e 5 mil.

As valas comuns provocaram tensões entre a Rússia e a Europa. O Conselho da Europa, o monitor de direitos humanos, tem pressionado pela exumação das valas comuns e identificação das vítimas e seus assassinos.

"Há um grande número de famílias que tiveram membros desaparecidos", disse Thomas Hammarberg, o comissário de direitos humanos do conselho, durante uma visita à Tchetchênia neste mês. "Logo, muitas pessoas foram afetadas por isso, de forma que não pode ser simplesmente varrido para baixo do tapete."

Mas, é claro, isto é o que está acontecendo, à medida que as novas construções destroem as evidências nos locais dos crimes de guerra. A construção da Escola para Surdos na Praça Minutka, por exemplo, serviu como sede temporária para as tropas do Ministério do Interior que se tornaram o foco de uma rara investigação dos crimes de guerra russos.

O porão, disseram testemunhas, foi usado para tortura. Um oficial russo foi condenado por assassinato. Mas em 2006, o porão foi enchido com entulho, visando estabilizar o lugar para a reconstrução da escola, disse Estemirova.

E enquanto prossegue a construção, até mesmo a questão de como ligar os nomes dos desaparecidos aos corpos não identificados em Grozny é contenciosa.

O Conselho da Europa está encorajando a Rússia a adotar um trabalho sistemático de perícia criminal nas sepulturas, antes que um grande número delas seja afetado pelas obras de construção.

O governo Kadyrov endossou uma proposta de fornecimento anônimo de informações sobre os desaparecidos pela Internet, basicamente separando a questão da identificação da questão politicamente mais carregada da culpabilidade.

Mas os desaparecimentos continuam na Tchetchênia. À medida que a política russa de "tchetchenização" do conflito ganhou impulso e, como até mesmo os críticos dizem a contragosto, sucesso na contenção da violência, os abusos cometidos pelos soldados russos diminuíram. Cada vez mais, os desaparecimentos exibem marcas de violência de tchetchenos contra tchetchenos.

Muitos moradores de Grozny ainda vivem em ruínas, com grandes buracos nas paredes. Mas a cidade está em grande parte pacífica. Ambulantes vendem cigarros, animais empalhados e latas de Red Bull nas ruas. Homens jovens em uniformes policiais matam o tempo nas calçadas, cuspindo sementes de gergelim, com rifles Kalashnikovs pendurados nos ombros. E o boom de construção permanece inabalável.

Mas a construção não fornece consolo para Adeni Idalova, uma moradora de Grozny que perdeu dois filhos. "Nossos filhos nunca caminharão nestas calçadas de ouro", ela disse. "Para que precisamos delas?"

Tradução: George El Khouri Andolfato

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